Recuperação Judicial da Americanas: “E agora José?”
Artigo de opinião, escrito por Dr. Leonardo de Mello Simão.
Sem intenção alguma de fazer um estudo literário acerca do poema de Carlos Drumond de Andrade, apegamos, neste texto, à intenção do ilustre poeta mineiro em retratar a sensação de abandono, de solidão e de desesperança do indivíduo José, que, provavelmente, deve ter sido a mesma experimentada por várias pessoas com a informação de que a Americanas S.A., integrante “Novo Mercado” da B3, carregava em seu balanço inconsistências contábeis na ordem de 20 bilhões de reais, informação essa seguida do não menos sísmico pedido de Recuperação Judicial.
Não bastassem os “Josés” empregados, fornecedores e credores da Americanas S.A., o que já seria assaz tormentoso, o divulgado erro contábil ainda foi profícuo em produzir outros “Josés”: os que investiram, diretamente ou através de fundos, suas suadas economias e experimentaram sensíveis perdas financeiras com abrupta desvalorização das ações (AMEC3). E nem se diga que esses investidores seriam sabedores do risco do investimento feito, pois se tornou público que a perda imposta ao ativo não decorreu da oscilação tão comum aos negócios empresariais, tampouco dos humores do mercado ou da conjuntura político-econômica do país. A perda aqui teve outro motivo!
É de pouca valia e nada confortador dizer a tantos “Josés” que o procedimento de Recuperação Judicial visa a manutenção da atividade produtora, do emprego e do interesse dos credores, posto que, no melhor cenário, sendo exitosa a recuperação judicial (fato que estatisticamente traz pouco ânimo), custará, e muito, ao bolso desses tantos “Josés” que não participaram e em nada contribuíram para tamanha inconsistência contábil.
A Pergunta inevitável e que carece de reposta é: se uma inconsistência contábil de R$ 20 bilhões foi detectada por um estranho à companhia, em menos de 10 (dez) dias, como pode passar desapercebida pela sua administração, Conselho fiscal, Comitê de Auditoria, Auditoria Externa e pelos próprios controladores, especialmente em se tratando de uma companhia que ostenta o invejável alto grau governança corporativa do “Novo Mercado”?
Anote-se que os próprios documentos publicados pela companhia revelam que o novo CEO da Companhia foi empossado no cargo em 02/01/2023. Menos de uma dezena de dias após a sua posse, o CEO apresentou renúncia, em 11/01/2023, fundamentada, conforme Fato Relevante publicado, na sua descoberta da inconsistência contábil divulgada.
Diante disso e partindo do pressuposto da não detecção oportuna dessas inconsistências contábeis pelos vários órgãos da companhia, ainda sim, lançam-se pertinentes dúvidas acerca do desempenho diligente, comprometido e fiel aos preceitos legais, normativos e estatutários dos órgãos sociais da companhia, do auditor externo e do controlador. Senão vejamos:
Dispõe a Lei das S.A. que, no desempenho das suas funções, os administradores, ou seja, os Conselheiros de Administração e os Diretores, assim como os conselheiros fiscais, devem empregar o cuidado e a diligência que todo homem probo e ativo aplica na administração dos seus negócios, servindo com lealdade aos interesses da companhia.
Tendo como norte o desempenho cuidadoso e ativo de seus membros, a Lei das S.A. prevê que o Conselho de Administração tem a competência de eleger e destituir, a qualquer tempo, os diretores. A eleição dos diretores é, portanto, uma escolha do Conselho de Administração que, além disso, tem o dever de fiscalizar a gestão da diretoria, através do exame dos seus livros, devendo, ainda, manifestar-se sobre o relatório da administração e as contas da diretoria, listando a lei mais algumas atribuições.
A seu turno, a mesma lei determina que competirá à diretoria, além do poder de representação, exercer as atribuições conferidas pela lei, estatuto e Conselho de Administração que sejam necessárias ao regular funcionamento da companhia.
Ao Conselho Fiscal, a lei atribui, dentre outras, a competência de analisar as demonstrações financeiras trimestrais examinar e opinar sobre as demonstrações financeiras do exercício.
Nesse caso, o que dizer então do Comitê de Auditoria, em que uma das suas finalidades, regulada pela CVM, é a de assessorar o Conselho de Administração no monitoramento e controle da qualidade das demonstrações financeiras.
Os controladores também têm obrigações legais! A sua atuação deve ser direcionada para cumprir a finalidade da companhia, bem como a sua função social, devendo observar, ainda, os direitos e deveres dos demais acionistas e da comunidade em que atua, os quais devem ser lealmente respeitados e atendidos, sendo considerada abusiva a conduta direcionada à tomada de decisões que não privilegiem o interesse da companhia e visem causar prejuízos aos demais acionistas, empregados e investidores.
Por fim, a auditoria externa que tem o dever, dentre outros, de verificar a conformidade das demonstrações financeiras que são publicadas e disponibilizadas no mercado.
Diante de tantos órgãos, detentores da competência, legal ou normativa, de atuarem justamente para evitar o ocorrido na Americanas S.A., os seus resolutos “Josés”, assim como no poema que inicia o texto, seguem a marcha, solitários, desamparados e sem rumo!
Dr. Leonardo é advogado especialista em direito societário, tendo atuado em diversas recuperações judiciais e falências.