Súmulas de jurisprudência: alguns comentários
Súmulas de jurisprudência: alguns comentários
Revista Consultor Jurídico, 16 de junho de 2021, 15h12.
Jurisprudência, como cediço, significa, lato sensu, a interpretação, em geral repetida, reiterada, dos tribunais e juízes, sobre leis (CF e espécies arroladas em seu artigo 59), resultante dos inúmeros julgamentos que efetuam, diuturnamente, definindo as questões controvertidas que lhes são apresentadas.
Súmula, a seu turno, é a síntese, o resumo da jurisprudência prevalecente, firmada, no âmbito de cada tribunal, a respeito das matérias, que podem ser tanto de direito material quanto processual, por eles julgadas. Seu objetivo primordial é, na essência, facilitar a aplicação dos precedentes, gerando economia processual, maior efetividade da jurisdição, mais segurança jurídica, otimizando, de forma mais racional, previsível e equânime, os inúmeros julgamentos que ocorrem no Judiciário pátrio.
A desembargadora Federal Mônica Sifuentes, em sua densa obra intitulada “Súmula Vinculante”, ed. Saraiva, 2005, páginas 238/9, registra:
“A introdução da súmula no ordenamento jurídico brasileiro se deu pelas mãos do ministro Victor Nunes Leal, autor da proposta que foi acolhida e incluída no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal em 1963, sendo encampada na legislação posterior, conforme se observa do disposto nos artigos 476 e seguintes do Código de Processo Civil de 1973.
À época, o sistema foi não só aplaudido como considerado o verdadeiro ‘ovo de colombo’, para desafogar os trabalhos da Corte, sobrecarregada de processos. O seu autor atesta que a inclusão se deu por motivos exclusivamente pragmáticos, como ‘método de trabalho’, diante do acúmulo de processos e em face da constatação de que nem o Supremo Tribunal Federal conhecia a sua própria jurisprudência.
Na sessão plenária de 13 de dezembro de 1963 foram aprovadas as primeiras 370 súmulas do Supremo Tribunal Federal. Quando foi concebida, a súmula tinha apenas caráter persuasivo, servindo como orientação ao julgador, quanto ao entendimento da mais alta Corte de Justiça do país. O Código de Processo Civil de 1973 estendeu a súmula de jurisprudência aos outros tribunais brasileiros, que passaram a editar as suas próprias súmulas.
A súmula de jurisprudência, prevista no Código de Processo Civil de 1973, tem, tal como foram concebidas as do Supremo Tribunal Federal, caráter persuasivo. Não existe, portanto, obrigatoriedade de sua adoção pelos juízes, nem mesmo em relação às súmulas editadas pelos próprios tribunais a que estão vinculados”.
Registre-se que pelo atual CPC (2015), diferentemente do anterior, o desejo, a recomendação legislativa, enfática, é que as súmulas, a par do poder persuasivo que lhes são inerentes, devem ser seguidas, observadas, pelos juízes e tribunais, conforme seu artigo 927; a rigor, elas seriam o reflexo do preconizado no seu artigo 926 — vale dizer, traduzem a almejada estabilidade, integridade e coerência jurisprudencial, que deve ser objetivo diuturno dos tribunais. Aí reside o anseio geral de respeito, a bem da segurança jurídica, da previsibilidade das decisões, conforme precedentes, em especial os sumulados.
Sem dúvida, referido e saudoso ministro deixou, além de outros vários predicados, em sua profícua existência, tal legado, o qual, sob a sua aparente singeleza, constituiu-se em expressivo avanço para o exercício da jurisdição, mormente naquela quadra, muito anterior ao advento da informática, quando o trabalho judicante era não só intelectual, mas também braçal, tanto para magistrados quanto para servidores.
Tão relevante a súmula que não é demasia afirmar que, certamente, os 91 tribunais do Brasil já editaram inúmeros enunciados sumulares, também as diversas Turmas Recursais dos Juizados Especiais, federais e estaduais. Não parou aí, pois se estendeu às inúmeras Cortes de Contas, colegiados administrativos, o que denota o seu alto significado para a prática cotidiana dos julgamentos.
Sob a legislação processual pretérita, nos tribunais, a regra consistia em julgamentos colegiados. Tal hegemonia, pode-se dizer, veio a ser excepcionada pela Lei 9.756, de 17/12/98, que alterou o CPC/73, artigo 557 e parágrafos, instituindo a decisão ou julgamento unipessoal, ao atribuir competência ao relator para negar provimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em conflito com súmula ou jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do STF ou de Tribunal Superior. Ou provê-lo, se fosse o caso.
O vigente CPC manteve, no geral, igual diretriz, segundo artigo 932 e seguintes, prevendo o provimento ou improvimento, conforme a hipótese, monocraticamente, do recurso, sempre possibilitando o acesso ao competente órgão colegiado, por meio de agravo interno.
A súmula do STF é também referenciada no artigo 1.035, § 3º, I, do CPC, como fonte de presunção da existência de repercussão geral, a justificar a admissão de RE, quando contrariada ou infirmada pelo acórdão recorrido.
Por sua vez, o artigo 927, do mesmo Código, prevê a observância, por juízes e tribunais, dentre outras hipóteses, de súmulas do STF, em matéria constitucional e do STJ, quando infraconstitucional, também as do próprio tribunal, inciso V. O § 4º, do mesmo preceito, requer a necessidade de específica fundamentação, quando ocorrer a modificação de enunciado sumular “…considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia”.
Esta sintética abordagem sinaliza que a súmula, comum, claro, por sua relevância para o sistema de justiça recebeu singular tratamento pelo atual CPC, a coadunar-se, aliás, com a ansiada estabilidade, integridade e coerência jurisprudencial, a par da sua utilíssima praticidade.
Escusado lembrar ser fundamental, tal como ocorre com as leis, lato sensu, a adequada aplicação de tais precedentes, concretamente, sob pena de infirmar-se os seus legítimos propósitos.
Lembre-se, em merecido apreço e homenagem ao ministro Marco Aurélio, prestes a se aposentar do STF, após longo, expressivo, competente, eficiente e justo exercício da Judicatura, o precedente contido no RE 590.809/RS, do qual foi relator (Tema 136, da repercussão), ampliando o alcance da Súmula 343, da referida Corte, cujo denso voto foi chancelado por expressiva maioria de seus pares. Tal verbete, editado em 16/12/1963, expressa:
“Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.
Este vetusto enunciado, é consenso, visa, precipuamente, a proteger a coisa julgada, a segurança jurídica, a paz social, que emergem de tal garantia magna, pétrea, daí a razão da estreiteza da rescisória, que não se legitima, dentre outras razões, quando a res judicata que se deseja desconstituir resultou de questão controvertida em tribunais diversos. A regra era aplicá-la quando o dissenso pretoriano fosse da legislação infraconstitucional, e não constitucional, direta, conforme precedentes, antigos, aliás, do próprio Pretório Excelso (RTJ 101/207, 108/207, 114/361 etc.). A propósito, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), editou a Súmula 63, fixando inaplicar-se a Súmula 343, em rescisórias versando matéria constitucional.
Em tal contexto, ao julgar procedente a ação rescisória (AR) ajuizada pela UF, referida Corte Regional, pelo tópico da expressiva ementa, transcrita no relatório de tal RE, gizou:
“Não se aplica ao caso vertente a orientação condida na Súmula nº 343 do STF, uma vez que está pacificado pela Súmula nº 63 deste Tribunal Regional Federal ser inaplicável aquele enunciado nas ações rescisórias versando matéria constitucional. No caso, a matéria debatida nestes autos — atinente ao alcance dos princípios constitucionais da seletividade e da não-cumulatividade do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), consolidados no artigo 153, §3º incisos I e II, da Constituição Federal, bem como ao artigo 150, §6º, da Carta Magna — é de ordem constitucional”.
Interposto o Extraordinário 590.809, o mesmo foi provido, recebendo o acórdão a seguinte ementa:
“AÇÃO RESCISÓRIA VERSUS UNIFORMIZAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA. O Direito possui princípios, institutos, expressões e vocábulos com sentido próprio, não cabendo colar a sinonímia às expressões ‘ação rescisória’ e ‘uniformização da jurisprudência’.
AÇÃO RESCISÓRIA — VERBETE Nº 343 DA SÚMULA DO SUPREMO. O Verbete nº 343 da Súmula do Supremo deve de ser observado em situação jurídica na qual, inexistente controle concentrado de constitucionalidade, haja entendimentos diversos sobre o alcance da norma, mormente quando o Supremo tenha sinalizado, num primeiro passo, óptica coincidente com a revelada na decisão rescindenda”
(RE 590809, relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 22/10/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL — MÉRITO DJe-230 DIVULG 21-11-2014 PUBLIC 24-11-2014 RTJ VOL-00230-01 PP-00505).
Verifica-se que o evolutivo precedente vinculante (Tema 136), consagrou, a um só tempo, o não-cabimento de ação rescisória como instrumento processual tendente a uniformizar jurisprudência e, também significativamente, estendeu a incidência da Súmula 343 às hipóteses em que a divergência interpretativa envolva matéria constitucional, estritamente, não só entre tribunais diversos como, igualmente, na esfera interna da própria Corte Magna; é dizer, ainda que esta tenha alterado a sua interpretação, tal não ampara rescisória a pretexto de sua nova, superveniente exegese, mesmo de norma da CF. Vale a pena a leitura dos substanciosos votos.
Tal orientação fora, de há muito, no plano infra, estratificada na Súmula 134, do então e TFR, a qual vale ser relembrada:
“Não cabe ação rescisória por violação de literal disposição de lei se, ao tempo em que foi prolatada a sentença rescindenda, a interpretação era controvertida nos tribunais, embora, posteriormente, se tenha fixado favoravelmente à pretensão do autor”.
O aludido RE consagrou, extensivamente ao plano constitucional, precisamente tal diretriz hermenêutica, pois, quando proferido o acórdão rescindendo a jurisprudência do próprio STF era favorável ao creditamento do IPI, no caso de insumos e matérias-primas adquiridas sob isenção, pela indústria, entendimento ampliado para compreender, também, insumos não tributados ou sob alíquota zero, conforme deflui do lapidar voto do relator. Anos após, o mesmo e Supremo, mudou o seu entendimento, excluindo o direito a tal creditamento, daí o aforamento e procedência, no TRF4, da AR, que superou a aplicação da Súmula 343, invocando o seu verbete sumular nº 63, decisão reformada em tal RE, sob o signo da repercussão geral (Tema 136), característica que determina a observância da aplicação da Súmula 343, por todos os Tribunais (artigos 926, 927, do CPC) desde que reste caracterizada a divergência interpretativa da lei ou “norma jurídica”, entre tribunais diversos, ou o próprio e col. STF, incluindo-se norma ou regra da própria CF.
O Tema 136, induvidosamente, foi e é de excepcional relevo na ampliação e maior proteção da coisa julgada, pois não é razoável que se-lhe “rasgue” o conteúdo, quando a mesma, após debates e debates, julgamentos e julgamentos, recursos e mais recursos, como é próprio do nosso processo, veio a se consolidar, em determinado sentido, ainda que controversa a interpretação em tribunais diversos, a respeito do tema jurídico.
O valor maior a ser preservado é aquele que infunde segurança jurídica, paz social, sendo fundamental a atuação do Judiciário em sua proteção, pois um dos grandes gargalos, fatores, que prejudica o Brasil é exatamente o seu oposto, ou seja, a insegurança jurídica. É inconteste, assim, a magnitude da res judicata, mais fortalecida, ainda, pelo RE em foco.
Recentemente, sobre a mesma matéria — IPI — o STF, como relator o ministro Edson Fachin e revisor o ministro Alexandre de Morais, afastou, unanimemente, pelo seu pleno, a AR 2.297-Paraná, em acórdão assim ementado:
“AÇÃO RESCISÓRIA. DIREITO TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS — IPI. CREDITAMENTO. COMPREENSÃO JURISPRUDENCIAL À ÉPOCA DO JULGAMENTO DA DECISÃO RESCINDENDA. SÚMULA 343 DO STF.
1) Não cabe ação rescisória quando o julgado estiver em harmonia com o entendimento firmado pelo Plenário do Supremo à época da formalização do acórdão rescindendo, ainda que ocorra posterior superação do precedente. Precedente: RE 590.809, de relatoria do ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJe 24.11.2014. Súmula 343 do STF.
2) A modificação posterior da diretriz jurisprudencial do STF não autoriza, sob esse fundamento, o ajuizamento de ação rescisória para desfazer acórdão que aplicara a firme jurisprudência até então vigente no próprio tribunal. No particular, antes reconhecia e depois veio a negar o direito a creditamento de IPI em operações com mercadorias isentas ou com alíquota zero. Precedentes: AR 2.341, de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski; AR 2.385, de relatoria do ministro Marco Aurélio, DJe 17.12.2015; e AR 2.370, de relatoria do ministro Teori Zavascki, Tribunal Pleno, DJe 12.11.2015.
3) Ação rescisória não conhecida”
(AR 2297, relator(a): Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 03/03/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-097 DIVULG 20-05-2021 PUBLIC 21-05-2021).
Registre-se, finalmente, que as Súmulas Vinculantes — CF, artigo 103-A —, não foram comentadas, não obstante o seu relevo jurídico, apenas as comuns, as quais, sob o vigente CPC, especialmente, devem ser lidas, compreendidas e aplicadas com a visão voltada para os importantes objetivos que subjazem aos seus artigos 926/7, dentre outros preceitos, sendo certo, inclusive, que julgamentos do Supremo, a exemplo do Tema 136, induz, ainda, muito mais eficácia e necessidade de observância do respectivo verbete, pelo Judiciário, a bem da valorização dos precedentes, o que é de suma importância para a confiabilidade e segurança nas instituições brasileiras, em especial da atuação de tal Poder, depositário último das justas e legítimas expectativas dos jurisdicionados.
Arnaldo Esteves Lima é sócio-fundador do escritório Arnaldo Lima e Barbosa Moreira Advogados e Consultores e ministro aposentado do STJ.
Veja também: O escritório Arnaldo Lima & Barbosa Moreira.
Revista Consultor Jurídico, 16 de junho de 2021, 15h12.