Temas 885 e 881 do Supremo Tribunal Federal e a garantia da coisa julgada, por Arnaldo Esteves Lima
Foi grande o interesse despertado, no âmbito jurídico, dos julgamentos dos RREE 955.227/BA e 949.297/CE, pelo STF (Supremo Tribunal Federal), cujos relatores foram os ministros Roberto Barroso e Edson Fachin, respectivamente. Vários e bons artigos, de diferentes autores, já foram publicados pelos sites jurídicos.
Como os acórdãos ainda não foram publicados, não há as suas versões definitivas. Inobstante, existe expectativa de interposição, pelos legitimados, no momento oportuno, de embargos de declaração, recurso que poderá levar a Corte a aprimorar (sentido da dicção do e. ministro Marco Aurélio, no AI 163.047-5) os julgados, considerando o relevo da matéria e as incertezas supervenientes, a se considerar, inclusive, as variadas abordagens já veiculadas, a respeito. É importante, em qualquer decisão, em qualquer grau decisório, na fase de conhecimento, que a mesma afaste, previna celeumas que possam sobrevir quando de seu cumprimento, sabendo-se, pois a prática o confirma, que muitas vezes a realização do direito, na fase própria (execução — atual, cumprimento), é tão ou mais árduo do que a sua prévia definição, pelo Judiciário.
O valor segurança jurídica, tão repisado dia a dia, crucial para as pessoas, naturais e jurídicas, claro, tem como pilares básicos as garantias pétreas do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, a sustentá-lo, tal como inscrito no artigo 5º, XXXVI, da Constituição, como já o fora pelas anteriores de 34, 46, 67/9, persistindo atuais, claras, as suas lapidares definições, pela Lindb (antiga LICC), artigo 6º e três parágrafos, cujas sintéticas e objetivas redações resultaram da Lei 3.238, de 1/8/1957, mantendo-se, ao longo do tempo, a precisão e clareza de tais conceitos legais na definição dos basilares institutos.
Os temas em apreço, ao que consta, foram assim redigidos:
“1) As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas de trato sucessivo.
2) Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.”
Ambos se vinculam, como se nota, a aspectos da coisa julgada, no ponto. Além disso, compreendem hipóteses em que sejam beneficiários de tal garantia magna, tanto sujeitos ativos quanto passivos de obrigações tributárias continuativas, conforme o caso concreto, podendo compreender, inclusive, outras vinculações da espécie, em questões diversas da fiscal.
A tese 1, não tem reflexo direto sobre referida garantia constitucional, que tenha se formado antes de instituído o regime de repercussão geral, mesmo em relações jurídico-tributárias de trato sucessivo. Como esse regime, decorrente do §3º, artigo 102, da CF, foi regulamentado pela Lei 11.418, publicada em 20/12/2006, a qual entrou em vigor 60 dias após tal data, significa que o termo inicial de sua vigência foi o dia 20/02/2007. Logo, caso julgado, mérito definido, antes de tal data não sofre o seu impacto, automaticamente, embora a inserção de tal advérbio, na sua redação, parece deixar implícito, no mínimo, certa dúvida interpretativa no sentido de que, por outro viés, remoto, digamos, tal impacto poderia sobrevir.
Resta a esclarecer, no pertinente, se a parte legitimada poderia se valer de rescisória, conforme previsto nos §§15 e/ou 8º, dos artigos 525 e 535, respectivamente, do CPC. Tais parágrafos preveem o cabimento de tal ação, cujo prazo bienal para ajuizá-la será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo STF, nas hipóteses previstas nos §§12 e 5º, de tais artigos, vale dizer, a decisão exequenda transitou em julgado, contudo, sobreveio julgado em sentido diverso do Supremo, nos moldes desses parágrafos, o que reabriria novo biênio para a propositura de eventual rescisória.
Tal inovação do CPC pressupõe e merece muita reflexão, pois reabre prazo para suposta rescisão de coisa julgada, até soberanamente, pois não faz exceção, à margem, aliás, das previsões ínsitas no seu artigo 966 e seguintes. Intuitivas a insegurança, a desconsideração da boa fé do beneficiário da res judicata, que se dispôs, confiantemente, a ingressar em juízo, com os riscos daí oriundos, foi bem sucedido e, sob o pálio da respectiva decisão, conduziu suas atividades negociais, não soando legítimo que, tempos depois, ante novo decisum, venha a ser surpreendido com obrigações pretéritas, em confronto, inclusive, com a confiança legítima subjacente a seu agir, albergado pela garantia da coisa julgada, enfim, verdadeira anomalia jurídica parece gravitar em torno da novidade legal, que merece e deve, ao ser aplicada, sofrer a necessária mitigação.
Lembre-se que eventual rescisão seria para afastar os efeitos materiais produzidos pelo julgado rescindendo anteriores ao julgamento da questão constitucional, pela Corte Suprema, nos moldes dos §§12 e/ou 5º, referidos, pois seus efeitos supervenientes ficarão automaticamente interrompidos a partir do quanto decidido em tal questão, conforme item 2, do tema. Por aí se infere, também, que seria um custo jurídico-institucional muito elevado infirmar garantia tão expressiva, pétrea, rescindindo-a, a todo custo, com prazo quase que indeterminado para fazê-lo, ante as previsões de tais §§15 e 8º, contexto que se afasta e muito, dos específicos requisitos insertos no artigo 966 e segs., do CPC, em especial do seu artigo 975 (decadência); em princípio, só seria minimamente compreensível, em tese, se a decisão rescindenda ainda não estivesse acobertada pela soberania da coisa julgada, quando da superveniência do julgamento da questão constitucional, pela Corte Excelsa, na linha do que preconizam os §§12 e 5º, mencionados.
Aliás, historicamente, sob o anterior CPC, a Lei 11.232/2005 introduziu o parágrafo único, a seu artigo 741, dispondo: “Para efeito do disposto no inciso II, do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal”.
Após reiterada jurisprudência, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) editou, a respeito, a Súmula 487, a saber: “O parágrafo único do artigo 741 do CPC não se aplica às sentenças transitadas em julgado em data anterior à da sua vigência”.
Ascendendo ao STF, pelo RE 730.462/SP, cujo relator foi o saudoso jurista ministro Teori Zavascki, à unanimidade foi consagrada a seguinte decisão (Tema 733):
“A decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo não produz automática reforma ou rescisão das decisões anteriores que tenham adotado entendimento diferente. Para que tal ocorra, será indispensável a interposição de recurso próprio ou, se for o caso, a propositura de ação rescisória própria, nos termos do artigo 485 do CPC, observado o respectivo prazo decadencial (artigo 495).”
Ponderadas essas diretrizes hermenêuticas das referidas Cortes. Certo, no entanto, que o panorama legal sofreu modificação pelos §§15 e 8º, dos artigos 525 e 535, do atual CPC.
Caso, entretanto, já tenha sido superado o biênio para o exercício de ação rescisória, admitir a reabertura de tal prazo ex novo, na esteira dos aludidos §§15 e 8º, seria atentatório a princípios fundamentais nobres que devem ser preservados, não só a segurança das relações jurídicas como, também, a confiança, em suma, a tranquilidade, a presunção de legitimidade, predicados que emanam, para o jurisdicionado, seu destinatário, das decisões judiciais, sobretudo aquelas protegidas pela coisa julgada, mormente se soberana, pois já amparada pelo biênio decadencial.
Enfim, na aplicação da lei deve se buscar o seu fim social, aliado ao bem comum, na pioneira definição do artigo 5º, da então LICC, valores que seriam amesquinhados se se admitisse, em casos tais, a reabertura do direito de postular desconstituição de decisão de mérito já protegida pela garantia da coisa soberanamente julgada. Imagine o efeito jurídico maléfico daí emergente para a parte que se houve, em seu atuar negocial, imbuído de boa-fé objetiva, confiança, credibilidade, etc., ante a proteção que lhe fora transmitida pelo respectivo julgado favorável. Sopesando o contexto, o prejuízo jurídico-institucional seria muito mais severo do que a manutenção do status quo, pois implicaria em derruir, totalmente, a segurança emanada das decisões do Estado-Juiz, no particular.
Por outro lado, caso a eventual decisão rescindenda ainda não se encontre sob a proteção da coisa soberanamente julgada, vale dizer, quando da emissão do juízo constitucional pelo STF, ainda não escoara o biênio decadencial, nesse caso, hipoteticamente, poder-se-ia aventar, quando muito, que o trânsito em julgado do acórdão a que se referem os §§15 e 8º, dos artigos 525 e 535/CPC, teria determinado a reabertura de novo biênio pois o anterior ainda não se consumara. Seria uma opção, quiçá plausível, que não deixaria totalmente no vácuo, no limbo jurídico, essa nova e heterodoxa previsão de rescisória, à margem das hipóteses típicas, comuns, abrigadas pelo artigo 966 e seguintes, do mesmo Código.
Quanto ao item 2, do tema, ante os efeitos vinculantes, erga omnes, legalmente previstos, resultantes dos julgamentos de ação direta ou em sede de repercussão (RE), pelo Excelso Pretório, é natural, coerente, além de consentâneo com a efetividade jurisdicional, que tal interrompa os efeitos temporais das decisões passadas em julgado nas relações tributárias de trato sucessivo, como restou proclamado. Careceria mesmo de sentido, objetividade, pressupor o ajuizamento de rescisória, para tanto, se o Tribunal competente para julgá-la só pudesse fazê-lo adotando a tese vinculante então firmada, conforme prescreve o CPC, artigo 927 e segs., sob pena de reclamação (988 e segs.) salvo, naturalmente, a existência de questão processual, preliminar, não compreendida pela tese e que fosse prejudicial ao exame do mérito, no caso concreto.
Nos temas em apreço, pioneiros ao tratar, especificamente, da matéria, seria equânime, justo, legítimo, que os efeitos materiais decorrentes se irradiassem a partir do trânsito em julgado dos respectivos acórdãos, por variadas e ponderosas razões, algumas mencionadas, considerando, inclusive, em sua compreensão e alcance, a própria Lindb, por exemplo, seu artigo 24, par. único, pois até então a jurisprudência, em regra, era favorável, no caso da CSLL, aos contribuintes que, diligente e legitimamente, buscaram seus direitos, em juízo, e foram atendidos, atuando sob o pálio das específicas decisões; logo, se conduziram legal e moralmente, de forma legitima.
A ulterior interpretação divergente adotada pelo STF, mesmo seus sinais prévios ao julgamento do mérito da ADI 15, cujo acórdão transitou em julgado em 12/9/2007, no sentido da constitucionalidade de referida contribuição, não deve desconsiderar tal passado, in totum, sob pena de se relegar a plano secundário, quase que desprezível, julgados dos demais órgãos que compõem o Judiciário Nacional, o que não se compraz com um Estado de Direito.
Como, em regra, ninguém é obrigado a demandar, sobretudo quando se trata de direitos disponíveis, não seria legítimo atribuir situação privilegiada, não isonômica, a beneficiários de decisões, do tipo, em face de outros, não beneficiários, estes, porque preferiram o não litígio ou, por “sorte”, não foram bem sucedidos, em seus pleitos. Assim, desigualdade concorrencial, se ocorreu, no passado, derivou de situações particulares, peculiares — alguns, litigaram; outros, não —, o que gerou natural discrímen a favor dos vitoriosos, judicialmente, o que, em tese não infirma, juridicamente, o princípio do tratamento igualitário, pois inexistia decisão uniforme, vinculante, à época.
Em suma, a modulação (artigos 525, § 13 e 535, §6º), fixando-se os efeitos desconstitutivos das coisas julgadas a partir dos trânsitos em julgado dos acórdãos nos referidos RREE, parece ser a solução mais equânime, realista, para a espécie, conforme superiormente houver por bem o STF, pois tal valoriza, a um só tempo, a segurança jurídica, seus corolários; a coisa julgada, garantia de sumo relevo social, que deve, sempre que possível, ser prestigiada, assim como, nas respectivas hipóteses, quando for o caso, os seus homólogos, direito adquirido e ato jurídico perfeito. Apesar do que já foi decidido, ainda poderá sobrevir alterações no julgamento de eventuais embargos de declaração, inclusive quanto a este fundamental aspecto.
Além de definir a matéria, o assunto em pauta despertou, no meio jurídico interessado, ao que se infere das múltiplas abordagens já veiculadas, forte sentimento de apreço pela importância que emerge, para a sociedade, da garantia da coisa julgada, tenha ela ou não, sido tisnada, o que é muito salutar para a ordem jurídica nacional.