Comentários sobre a observância dos precedentes judiciais
Comentários sobre a observância dos precedentes judiciais
Revista Consultor Jurídico, 11 de março de 2019, 12h24.
O vigente CPC, de forma clara, inovadoramente, pode-se dizer, valoriza, visando a sua observância na prestação jurisdicional, o precedente. Este configura-se ou constitui-se quando o tribunal competente decide determinada matéria, sob rito específico, legalmente estabelecido, de tal modo que o resultado do julgamento, definindo a controvérsia, terá eficácia para os feitos que tratem de igual questão, sob o mesmo enfoque, já submetidos à jurisdição nacional, aguardando a superveniência do decisum. Também deverá incidir para aqueles que vierem a ser ajuizados posteriormente, os quais poderão ou deverão receber liminar improcedência, segundo o artigo 332 e seguintes, ou, eventualmente, alcançar tutela de evidência, conforme o artigo 311, II, do mesmo código.
Cuida-se, sem dúvida, de precedente qualificado pela observância do devido processo legal que lhe seja inerente, cujos requisitos essenciais devem ser, cogentemente, cumpridos pelo tribunal competente, quando de sua produção, inclusive para gerar a sua densidade persuasiva, eficácia normativa, de modo a conferir-lhe significativo grau de segurança jurídica, concorrendo, assim, para o cumprimento da razoável duração do processo, pois o resultado do respectivo julgamento se estenderá a inúmeros feitos que tratem de igual matéria.
De tal contexto ressai, ainda, o atendimento pelo Judiciário do princípio constitucional da eficiência, atendendo, ademais, ao legítimo anseio público que clama pela superação, tanto quanto possível, do grande gargalo processual, que é a sua morosidade.
Em tal norte, o artigo 926 não apenas exorta, mas, na verdade, determina aos tribunais a uniformização, a estabilidade, a integridade e coerência de sua jurisprudência. O artigo 927, a sua vez, arrola as hipóteses em que os juízes e tribunais observarão os precedentes ali indicados, normas pioneiras.
É oportuno registrar que ainda não existe, em nosso Judiciário, cultura sedimentada de seguir precedentes. Há, no entanto, evolução em tal sentido. Aliás, a magistratura sempre foi muito ciosa da preservação do chamado livre convencimento, motivado, em suas decisões, então previsto no artigo 131, do anterior CPC, 371, do atual, tendo este suprimido, diga-se de passagem, a expressão “livremente”. Penso ser relevante a liberdade de convicção para julgar, desde que, naturalmente, fundamentada nos fatos da causa, devidamente sopesados, sabendo-se, ademais, que a função mais sensível do magistrado é, precisamente, fazer a devida distinção nos casos que lhes são submetidos à apreciação, o que, necessariamente, envolve razoável grau de subjetivismo ao decidi-los.
A observância, a aplicação do precedente, a rigor, não infirma a liberdade do magistrado para julgar, ao contrário, sob certo aspecto a valoriza, permitindo, inclusive, que lhe reste mais tempo para se dedicar a questões relevantes e que são muitas, que acessam o Judiciário, cotidianamente e para as quais ainda não haja solução vinculante preestabelecida. A prática a tanto o confirma.
O propósito legal declarado é, destarte, que a observância do precedente configure rotina comum, no dia a dia da jurisdição, pois os benefícios institucionais e particulares que encerra são muitos.
Ocorrendo, todavia, a sua inobservância, fica aberto à parte legitimada e ao MP, em tese, duas opções para contrastar judicialmente tal resistência.
A primeira será o acionamento de reclamação, instituto previsto, constitucional e originariamente, apenas quanto ao STF, no artigo 102, I, l, e, quanto ao STJ, no 105, I, f/CF, em ambos, com o propósito de preservar as competências de tais cortes e/ou garantir a autoridade de suas decisões. O CPC inovou, no ponto, ao disciplinar referido instituto, dedicando-lhe os artigos 988 a 993, alargando o seu cabimento, prevendo-o, inclusive para a garantia da observância de precedente, que deveria ser aplicado, mas não o foi. Como, entretanto, tal só é cabível, em tese, enquanto não transitar em julgado a decisão reclamada — parágrafo 5º, II, artigo 988 e Súmula 734/STF —, a partir daí, em princípio, a inobservância de precedente pode encontrar respaldo, em juízo, através de outro instituto, qual seja, ação rescisória.
A mesma, assim, pode ser manejada tendendo a assegurar a eficácia de precedente inobservado, pois os parágrafos 5º e 6º, acrescentados ao artigo 966, pela Lei 13.256, de 4/2/2016, prescrevem:
§ 5º Cabe ação rescisória, com fundamento no inciso V do caput deste artigo, contra decisão baseada em enunciado de súmula ou acórdão proferido em julgamento de casos repetitivos que não tenha considerado a existência de distinção entre a questão discutida no processo e o padrão decisório que lhe deu fundamento. (Incluído pela Lei nº 13.256, de 2016) (Vigência)
§ 6º Quando a ação rescisória fundar-se na hipótese do 5º deste artigo, caberá ao autor, sob pena de inépcia, demonstrar, fundamentadamente, tratar-se de situação particularizada por hipótese fática distinta ou de questão jurídica não examinada, a impor outra solução jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.256, de 2016) (Vigência)
Como se verifica, ao fazer remissão ao inciso V, do artigo 966, o parágrafo 5º deixa entrever que súmulas e acórdãos resultantes de julgamentos repetitivos (artigos 967 e seguintes e 1.036 e seguintes), configuram, para a finalidade, norma jurídica; como tais parágrafos não qualificam a espécie de súmula, mesmo a comum teria a referida natureza; quanto à vinculante, não há dúvida de sua cogência, cuja matriz é a própria CF, artigo 103-A e parágrafos.
Os dispositivos transcritos não mencionam também, para a finalidade a que se referem, acórdão oriundo do julgamento de incidente de assunção de competência, não obstante ser peremptória a redação do parágrafo 3º, do artigo 947, do mesmo código, ao determinar o efeito vinculante do respectivo precedente, além de sua inserção, ainda, no inciso III, do artigo 927. Como as hipóteses do cabimento de rescisória são de direito estrito, competirá à jurisprudência definir se, inobservado acórdão que julgou IAC, tal justificará o manejo da mencionada ação, forte no inciso V, do artigo 966 c/c o seu parágrafo 5º.
Quanto a súmulas comuns, igualmente será importante delimitar se a sua inobservância autoriza, igualmente, juízo rescisório, sabendo-se da excepcionalidade que caracteriza a ação em foco, certo, ademais, que sob a anterior codificação — artigo 485 e seguintes — era pacífica a jurisprudência no sentido de que violação de súmula não justificava o seu ajuizamento. Vimos, todavia, que o panorama jurídico mudou, a reclamar, quem sabe, nova exegese.
A despeito de controvérsias interpretativas, o que é muito próprio do Direito, em especial quando da superveniência de inovações legislativas, como ocorreu, o certo é que há latente anseio comum, na seara jurídica, pela observância dos precedentes, pelas variadas boas razões que a tanto o justificam, o que naturalmente se consolidará com o decorrer do tempo não longínquo.
O desejo do legislador processual, ínsito no apelidado “Código Fux”, foi expresso em tal sentido, o qual ainda teve o cuidado de prever reclamação e rescisória, para combater pontuais desvios resultantes da indevida inobservância de precedente, fiel ao princípio segundo o qual quem quer a obtenção da finalidade legislativa ministra meios adequados para contribuir com a sua concreção. Quanto ao mais, agradeço a paciência de eventuais leitores!
Arnaldo Esteves Lima é sócio-fundador do escritório Arnaldo Lima e Barbosa Moreira Advogados e Consultores e ministro aposentado do STJ.
Veja também: O escritório Arnaldo Lima & Barbosa Moreira.
Revista Consultor Jurídico, 11 de março de 2019, 12h24.