Acordos de leniência e seus desafios

Acordos de leniência e seus desafios

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) está em processo de revisão de seu Guia do Programa de Leniência Antitruste, que tem por objetivo sistematizar as melhores práticas e procedimentos adotados para negociação de acordos de leniência. A revisão, acompanhada da criação de Grupo de Trabalho para aprimoramento do programa, vem em momento bastante relevante, considerando os desafios enfrentados pela comunidade antitruste mundial nos últimos anos em relação aos acordos de leniência.

No decorrer do tempo, esses acordos se tornaram importantes instrumentos para a persecução e punição de condutas anticompetitivas, especialmente de cartéis. Nota-se, porém, uma diminuição no número de novos casos, levando a comunidade antitruste a questionar os motivos de tal redução. Enquanto, de um lado, aponta-se que parte dessa queda decorreria da própria efetividade dos programas de leniência – na medida em que as sanções potenciais desencorajariam a conduta -, de outro, identificam-se desafios ainda persistentes (ou mais significativos ao longo do tempo) que podem ter contribuído para essa diminuição.

Dentre esses desafios, estariam os apontados abaixo. O primeiro deles diz respeito ao aumento da cooperação internacional entre agências antitruste, que vem se tornando cada vez mais frequente. Em cartéis internacionais, a necessidade (ou possibilidade) de negociação com mais de uma agência antitruste em geral leva a maiores custos, tanto financeiros, como de transação, para coordenar os acordos, além de trazer desafios relacionados ao tratamento confidencial dos documentos disponibilizados para as autoridades, considerando que regras dessa natureza não necessariamente coincidem ao redor do globo.

Outro desafio está na possibilidade de o acordo de leniência levar as signatárias a serem investigadas por diferentes órgãos administrativos em um mesmo país (e.g.agências reguladoras do setor no qual a empresa se insere). Nesses casos, os efeitos dessas investigações — diferentes punições em várias esferas — pode desincentivar a utilização de programas de leniência.

Também relacionada com os pontos acima, outra possível causa do declínio são os recursos financeiros dispendidos para a proposição de uma leniência. A signatária incorrerá com custos de consultoria legal, investigações internas e análise de documentos, que poderão ser de tal forma significativos que a leve a ponderar entre o custo de se submeter a um acordo e o custo de ter a conduta potencialmente detectada e punida pela autoridade.

Outro potencial fator de desincentivo está no risco de pagamento de danos civis. Ações de execução privada de reparação de danos são cada vez mais disseminadas. Caso não haja algum benefício em relação a esse ponto, pode-se desincentivar as aplicações aos programas de leniência.

Embora não se saiba ainda de que forma a edição da Lei 14.740/2022 – que busca encorajar a apresentação de ações de reparação de dano civil em casos de condutas concertadas e cartéis no Brasil – impactará a assinatura de acordos de leniência, vê-se que o legislador teve o cuidado de isentar signatários de acordos de leniência (e de termos de compromisso de cessação de prática) de double damages (os quais responderão apenas pelos prejuízos causados) e de responsabilidade solidárias pelos danos causados pelos demais autores da conduta anticompetitiva. Se, de um lado, a legislação incentiva o aumento no número de ajuizamento de ações de reparação, de outro, concede benefícios para aqueles que firmam acordos de leniência.

Por fim, também a duração dos processos, que estão cada vez mais longos, exigindo maiores gastos de tempo e financeiros, pode estar contribuindo para a diminuição de leniências assinadas ao redor do mundo.[1]

Além desses fatores desafiadores à assinatura de acordos de leniência discutidos e verificados globalmente, a partir da revisão de casos julgados desde 2020, nota-se que o Cade também tem enfrentado questões específicas em processos administrativos julgados pelo Tribunal.

O ponto de maior discussão diz respeito à robustez do conjunto probatório apresentado na negociação de acordos de leniência.

Em casos recentes, o Cade vem indicando que as provas apresentadas devem ser fortes e robustas para atestar a existência da conduta anticompetitiva, atestando, para além da dúvida razoável, o envolvimento individualizado dos investigados. Nesse sentido, a diversidade de provas e indícios (em especial a existência de evidências diretas, cumuladas com provas unilaterais e bilaterais) e a corroboração entre as provas, seriam decisivos para fortalecer o conjunto de evidências, assegurando efetivo standard probatório.[2]

Frequentemente, representados questionam documentos apresentados de forma unilateral pelas signatárias, alegando não serem suficientes para tornar o acordo de leniência legítimo.[3] A respeito, o Cade tem indicado que se os documentos apresentados forem contundentes para demonstrar a infração, independentemente de serem unilaterais, bilaterais ou multilaterais, não haveria que se falar em nulidade do acordo por não apresentação de provas. Já observou que, caso passem por validação do contraditório e ampla defesa, corroborem com confissões de demais investigados, estejam em sintonia com o restante do conjunto probatório, podem ser utilizados para punir os membros da conduta anticompetitiva.

Embora o Guia Recomendações probatórias para propostas de acordo de leniência com o Cade, lançado pela autarquia em 2021, busque auxiliar a comunidade antitruste em relação ao conjunto probatório nos processos de negociação de acordos de leniência, como visto, ainda persistem discussões envolvendo o tema.

Além de outros pontos menos frequentes, também tem sido discutida a necessidade de individualização da conduta quando da instauração do processo administrativo pela Superintendência-Geral, da qual dependeria a validade de eventual condenação.[4] Nesses casos, o Cade tem sinalizado que exigir a individualização quando da nota técnica de instauração seria uma forma de inverter a lógica do processo, na medida em que a individualização decorreria justamente da instrução do processo, posterior à sua instauração.

A revisão do Guia do Programa de Leniência Antitruste pelo Cade marca um passo significativo na adaptação do sistema brasileiro às complexidades contemporâneas. O novo Guia tem a oportunidade de endereçar os desafios acima, dentre outros, dando maior transparência para a prática e aprimorando-a, além de poder servir de instrumento de fomento para a assinatura de novos acordos. Com isso, reforça-se esse mecanismo tão importante para a persecução e punição de condutas anticompetitivas, em especial, de cartéis.


[1] Para mais análise mais detalhada dos desafios envolvendo acordos de leniência no mundo, ver ORGANIZAÇÃO PARA COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). The Future of Effective Leniency Programmes: advancing detection and deterrence of cartels. Disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/the-future-of-effective-leniency-programmes-2023.pdf. Acesso em 05 abr. 2024; e INTERNATIONAL COMPETITION NETWORK. Good practices for incentivizing leniency applications. Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/assuntos/programa-de-leniencia/publicacoes-relacionadas-a-acordo-de-leniencia/ICN_CWG-Good-practices-for-incentivising-leniency.pdf. Acesso em 05 abr. 2024.

[2] Vide cartel no mercado de sistemas térmicos automotivoscartel no mercado de transporte marítimo realizado por navios Roll On Roll Off.

[3] E.g., cartel no mercado de fornecimento de tubos e conexões de polietileno de alta densidade para obras de infraestrutura de saneamento de água e esgoto e de fornecimento de gáscartel no mercado de produção e comercialização de resinas fenólicas; e cartel no mercado de autopeças de filtros automotivos.

[4] Discussões nesse sentido em cartel no mercado de silicatos e cartel no mercado de autopeças de filtros automotivos.

Fonte:  www.jota.info

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